"Precisamos nos preparar para a ameaça contínua", diz Nobel de Medicina

Foto: Paul Wilkinson/Ludwing Institute for Cancer Research/Cortesia.

Britânico laureado em 2019 com o Prêmio Nobel de Medicina admite ao Correio que o novo coronavírus não será eliminado em um futuro previsível, faz alerta sobre o fim do isolamento e vê transformações na humanidade como herança da pandemia

O mundo precisará aprender a conviver com o Sars-CoV-2, o novo coronavírus causador da covid-19. O alerta foi feito pelo médico nefrologista britânico Sir Peter J. Ratcliffe, 66 anos, diretor do Target Discovery Institute do Departamento de Medicina da Universidade de Oxford, diretor de Pesquisa Clínica do Instituto Francis Crick (Londres) e um dos três ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 2019. Ratcliffe ajudou a descobrir os mecanismos-chave que nossas células utilizam para detectar e responder a baixos níveis de oxigênio — fenômeno conhecido como hipóxia. 

Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, ele afirmou que boas vacinas não se mostraram eficientes na completa eliminação dos vírus. Questionado sobre o retorno de alguns países à atividade econômica, Rattclife admitiu que o principal fator protetivo contra a covid-19 está no cuidado das pessoas de não se misturarem a aglomerações. 

O Nobel de Medicina, que dividiu o prêmio com os americanos William G. Kaelin Jr. (Universidade de Harvard) e Greg Semenza (Universidade Johns Hopkins), também teorizou sobre o “novo normal” — o modo de vida herdado depois da pandemia. “O comportamento humano desequilibrado tende a desaparecer”, disse Ratcliffe, ao citar menos viagens, uma readequação do transporte urbano e a valorização do trabalho a distância.

Muitas nações europeias, mas também o Brasil e os Estados Unidos, começam a abrir a economia ou pensam em aliviar as restrições. Como o senhor vê essa decisão?

É algo muito difícil de avaliar. O menor risco é pautado pela existência de doentes em menor quantidade, a qual é pautada por menos contato social. Qualquer abertura das atividades econômicas propiciará um maior contato, o que reverterá em mais doentes. Esperamos que isso ocorra a um nível gerenciável. Para ser honesto, a mais importante exclusão passa pela prevenção das pessoas de se misturarem a grupos muito grandes. Eu tenho escutado sobre reuniões sociais. Além disso, grandes ambientes de trabalho em plano aberto são um problema. Esperamos mitigar isso, evitando-se grandes grupos ou retomando os testes e isolando as pessoas que testarem positivo ou que tiverem sintomas.

O senhor acredita que  o mundo enfrentará uma segunda onda de infecções pelo novo coronavírus?

Com os dados de que dispomos, é algo muito difícil de saber. Em muitos países do mundo, os dados atuais indicam que apenas uma pequena minoria das populações foi infectada, e o nível de imunidade geral se mostrou baixo. Esperamos que, talvez, mais pessoas se mostrem resistentes por diferentes razões, talvez ao serem submetidas a uma vacina que aumente o nível de imunidade e por terem sido expostas a um primeiro contato com o vírus. Isso poderia evitar uma nova onda pandêmica.

O que torna o Sars-CoV-2 tão diferente dos outros vírus?

A característica particular do novo coronavírus é que ele é extremamente infeccioso. De alguma forma, isso serve de alerta para o mundo. Porque, à exceção para os idosos, o Sars-CoV-2 é apenas moderadamente perigoso. É óbvio que se trata de um vírus perigoso, capaz de matar pessoas de diferentes idades. Mas a taxa de letalidade parece baixa, à exceção das pessoas que façam parte de grupos de risco e dos idosos. A priori, não existe nenhuma razão absoluta para isso, mas os vírus causadores da Sars (Síndrome Aguda Respiratória Severa) ou da Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) são muito mais perigosos em termos de taxa de letalidade. O problema de o novo coronavírus ser tão infeccioso é algo bom, por não se mostrar tão perigoso quanto a Sars ou a Mers.

Como o senhor imagina que será o chamado “novo normal” pós-pandemia?

Acredito que o comportamento humano desequilibrado tende a desaparecer. Não acredito que viajaremos tão fácil e frequentemente quanto costumávamos fazer. Vejo que a comunicação de longa distância é bem efetiva, sem a necessidade de viajar. Também suspeito de que precisaremos revisar o planejamento de nossas cidades, capacitando mais o transporte a pé ou de bicicleta, a fim de reduzir a pressão sobre o metrô e os ônibus superlotados. Suspeito, ainda, de que muitas pessoas perceberão que podem trabalhar de suas próprias casas. A presença das pessoas em seus locais de trabalho será reduzida. Alguns vírus em particular e outros agentes infecciosos sempre representarão uma ameaça aos seres humanos, principalmente em aglomerações e durante viagens. Acho que veremos uma reorientação das pesquisas médicas em relação à ameaça representada pelos vírus. Em ocasiões futuras, estaremos um pouco mais preparados para controlar epidemias. Está claro que os passos tomados em Hong Kong — que enfrentou a epidemia de Sars — foram notáveis, mostrando o que pode e o que não pode ser feito. Eles serviram de exemplo a países para saberem como podem ser tão eficientes em mecanismos de controle de infecção.

O mundo precisará aprender a lidar com o novo coronavírus ou conseguirá eliminá-lo?

A extinção é algo que se provou extremamente difícil para uma quantidade de vírus, mesmo quando existe uma vacina eficiente. Não tem sido possível livrar o mundo desses vírus, apesar de boas vacinas. A resposta é a incerteza. Não há garantias. No entanto, vimos que o vírus causador da Sars, muito menos infeccioso, desapareceu. Eu temo que precisemos nos preparar para a ameaça contínua representada pelo novo coronavírus em um futuro previsível.

Correio Braziliense