A arrogância moral de um povo deitado eternamente em berço esplêndido

Imagem ilustrativa.

INALDO BRITO | “A aparência das virtudes é muito mais sedutora do que as próprias virtudes, e quem se vangloria de as possuir tem grande vantagem sobre quem realmente as possui.” Madame de Riccoboni

Durante muito tempo, a sociedade se beneficiou não tanto pela ajuda governamental, mas sim pela voluntariedade dos cidadãos e seus semelhantes em fornecer assistência social, tanto na abertura de instituições filantrópicas, como orfanatos, centros de capacitação profissional ou restaurantes comunitários, como também em ajudas de custo diretamente aos mais vulneráveis, carentes e marginalizados. Foi só através da entrada do Estado em tomar para si essa responsabilidade, por meio de tributação dos que tinham mais para redistribuir aos que tinham menos, é que essa voluntariedade praticamente arrefeceu.

O ímpeto em querer ajudar os mais pobres perdeu força assim que o Governo entrou na equação. Infelizmente, a história mostrou (e ainda mostra) que a assistência governamental está aquém do que se imaginara. Mas não só isso: políticas públicas de assistência social tornaram-se num tipo de barganha política, cujo interesse de políticos e militantes do assistencialismo público reduziu o cidadão pobre (ou de baixa renda) a um simples peão no tabuleiro político.

Qual o maior problema decorrente disso? O sentimento da população é que só quem ajuda os mais pobres são os políticos detentores da máquina pública ou aqueles que, quando discursam ou são entrevistados, entre dez palavras ditas, onze incluem os termos “dinheiro” e “pobres”. Passa-se a ideia que o mais abonado, o de classe média ou o rico só pensa em si, que não se preocupa com o marginalizado ou o de baixa renda. Com isso, voltamos à velha querela social, opressores versus oprimidos, idealizada por Karl Marx, e, assim, involuímos civilizatoriamente.

Recentemente, uma notícia trouxe à tona novamente essa questão sobre esse suposto egoísmo dos mais ricos: a compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk. O acordo firmado para a aquisição da plataforma de rede social foi fechado no valor de 44 bilhões de dólares (cerca de 215 bilhões de reais). O valor do montante anunciado foi o suficiente para que o bilionário fosse alvo de críticas oriundas dos mais variados setores. Políticos, classe artística e até mesmo jornalistas se propuseram a avaliar negativamente o investimento de uma soma tão grande de dinheiro para comprar “uma simples rede social”. Curiosamente o argumento mais utilizado por esses críticos era que esse volumoso capital seria muito mais útil se fosse empregado no combate à fome no mundo.

A ONU apresentou um relatório ano passado informando que no ano de 2020 a quantidade de pessoas que sofreram com a fome era estimada em 811 milhões. O continente africano ainda continua sendo o mais afetado, agravado em sua maior parte por guerras civis, crises econômicas, alterações climáticas e, mais recentemente, pela pandemia.  Inúmeros repasses de ajuda externa e humanitária são feitos a diversos países do continente africano há muito tempo, entretanto isso ainda não é suficiente para conter o aumento da fome no continente. Isso porque, segundo os autores Daron Acemoglu e James Robinson apontam em seu livro Por que as nações fracassam:

Os países necessitam de instituições políticas e econômicas inclusivas a fim de romper o ciclo da pobreza. A ajuda externa normalmente pouco pode fazer quanto a isso, e sem dúvida não no seu formato atual. É fundamental reconhecer as origens da desigualdade e da pobreza mundiais exatamente para que não atrelemos nossas esperanças a falsas promessas. À medida que suas origens estão nas instituições, a ajuda externa, promovida no contexto dessas mesmas instituições nas nações destinatárias, pouco poderá fazer no sentido de incentivar o crescimento sustentado.

Basicamente, o argumento dos autores é que, enquanto as instituições políticas e econômicas dos países que recebem os repasses não se tornarem democráticas e avançadas, a ajuda externa continuará sendo apenas um fim em si mesma para promoção política e social (por aqueles países que enviam os repasses de dinheiro) e para manutenção de ditadores no poder, coagindo ONGs (que possuem interesse em continuar atuando em determinada região de insegurança alimentar) a lhes repassar uma fração da ajuda externa que recebem.

No episódio da compra do Twitter, as reações que vemos, infelizmente, carregam mais um virtuosismo moral (isto é, uma falsa virtude; ou, mais especificamente, uma arrogância moral) do que espírito filantrópico. O sujeito que utiliza o argumento de que teria sido melhor utilizar aqueles bilhões para acabar com a fome é o mesmo que não se importa em ver seus totens políticos se esbaldando em fundos bilionários para os partidos que integram. Políticos que se indignaram com o valor de compra do Twitter possuem como alvo de seu juízo não a vontade de utilizar o dinheiro para acabar com a fome no mundo. Antes, é o de ter visto uma quantia maior do que a que foi repassada aos seus partidos sendo despendida por um sujeito que tem procurado peitar o establishment nesses últimos anos.

Em sua grande maioria, as pessoas que exigem dos outros atitude exemplar, como, por exemplo, que o dinheiro utilizado por Elon Musk para comprar o Twitter fosse destinado a acabar com a fome, são também as mesmas que sequer fazem o mínimo daquilo que exigem, isso quando fazem alguma coisa. Será que essas pessoas também tomam alguma atitude para acabar com a fome no mundo? E aqui não me refiro a dar esmolas, haja vista ser uma atitude que sana a fome de alguém apenas no curto prazo. Antes, refiro-me, por exemplo, a abrir ou financiar uma empresa que gere empregos, estimular ou incentivar financeiramente a capacitação profissional de pessoas em comunidades carentes ou até mesmo “adotar” um estudante de baixa renda e custear seus estudos.

O problema é que pessoas assim confiam demasiadamente nas instituições políticas e econômicas de seu país, isso quando não depositam suas esperanças nos próprios agentes dessas instituições, como fomentadores de assistência social. Não é por falta de ajuda que a fome não acaba no mundo; antes, é pela vontade de demagogos em manter os mais pobres permanentemente nessa condição de pobreza e miséria. A história política do nosso país demonstra que o desejo de alguns em querer “zerar a fome” se mostrou ineficaz não tanto pela ideia per se, mas sim devido aos meios utilizados, e, ainda assim, ninguém veio a público reconhecer esses erros, mas insistem em querer dar lição de moral. Haja óleo de peroba para tanta cara de pau!