A mulher incapaz de sentir dor

Jo Cameron com seu marido, Jim, e seus filhos, Amy e Jeremy.

Mutação genética faz o cérebro de uma britânica de 66 anos produzir mais substâncias relacionadas à felicidade, segundo uma equipe internacional de cientistas

As Highlands escocesas estão cheias de lendas sobre fadas, lobisomens e criaturas misteriosas nas profundezas do lago Ness, mas esta história é real. Os funcionários do hospital Raigmore, em Inverness, capital dessa região, ainda recordam o dia em que uma mulher de 66 anos entrou ali para extrair um osso do punho que estava na base do polegar por causa de uma osteoartrite. “Não é preciso que me anestesiem, porque não sinto dor”, disse-lhes a senhora, sorridente, ao anestesista Devjit Srivastava. Ele, incrédulo, seguiu o protocolo habitual e adormeceu a paciente, mas ficou pensativo. E se fosse verdade?

E era. Uma equipe internacional de pesquisadores apresenta nesta quinta-feira o caso de Jo Cameron, uma mulher “brincalhona, feliz, otimista” e com “insensibilidade à dor”, características produzidas, segundo os cientistas, por duas mutações em seu genoma que a fazem ter quase o dobro de canabinoides endógenos em seu cérebro. “É muitíssimo. Isto me torna ridiculamente feliz, e é incômodo estar comigo. As pessoas gostam de ficar tristes”, brinca Cameron por telefone.

Depois daquela operação que deveria ser dolorosa, o anestesista Srivastava decidiu ficar atento àquela mulher. Observou que lhe administravam uma só dose de paracetamol, “possivelmente por rotina”, e Cameron não pedia mais, rememora ele, ainda assombrado. O médico experimentou beliscá-la, e era como se nada acontecesse. Então começaram as perguntas.

Um ano antes, Cameron tinha se submetido a outra cirurgia para colocar uma prótese no quadril. Tampouco sentiu dor, contou. “Eu me queimo com frequência na cozinha e só percebo quando cheira a carne queimada. Tenho muitas cicatrizes no meu corpo”, relata por telefone. “Não é algo bom. Tem suas vantagens e seus inconvenientes. A dor avisa que algo de ruim está acontecendo. E eu não fico sabendo.”

Srivastava avisou alguns colegas, e o insólito caso chegou a instituições como as universidades de Oxford, Cambridge e da Califórnia. Seu estudo, publicado na revista especializada British Journal of Anaesthesia, aponta as supostas causas da felicidade sem dor de Jo Cameron.

Jo Cameron come pimenta superpicante no consultório do anestesista Devjit Srivastava, em Inverness (Escócia).

É que cada célula humana funciona graças a um manual de instruções de três bilhões de letras. Um parágrafo desse livro minúsculo controla a produção de FAAH, uma enzima que degrada a anandamida, um composto químico que por sua vez permite a comunicação natural entre neurônios no cérebro. O nome anandamida deriva da sensação que produz. Ananda, em sânscrito, significa felicidade. Considera-se um canabinoide endógeno porque seus efeitos são similares aos da planta cânabis, a maconha.

Os investigadores acreditam que Cameron herdou duas mutações na zona do genoma humano que guarda as instruções sobre como eliminar a anandamida. “Acreditamos que ela não sofre nenhum problema na transmissão da dor, mas sim que a abundância de anandamida [...] no cérebro, devido a seus defeitos genéticos, faz que não sinta a dor”, resume Srivastava.

O anestesista recorda que diante de uma queimadura, por exemplo, o corpo envia sinais elétricos através dos nervos até a medula espinhal, que processa essa mensagem e a leva ao cérebro. “Os sinais que chegam ao cérebro formam a experiência da dor, mas esta sensação depende da genética, do estado emocional, do estado hormonal, das expectativas, das experiências prévias e de outros fatores”, observa Srivastava. A overdose natural de anandamida na cabeça de Cameron diluiria essa mensagem dolorosa no cérebro.

“É uma história assombrosa. Tenho o privilégio de ter podido me debruçar sobre a estrutura da natureza”, comemora o anestesista que encontrou por acaso essa paciente num hospital das Highlands escocesas. Uma foto mostra Srivastava e Cameron juntos no consultório. Ela aparece mastigando uma pimenta extremamente picante, da variedade Scotch Bonnet, conhecida em alguns países como bolas de fogo. “A senhora Jo pode comê-la sem sentir nenhuma sensação de ardor”, observa o médico, pasmo.

“Nosso objetivo final é encontrar melhores tratamentos para milhões de pessoas com dor crônica”, explica James Cox, biólogo molecular do University College de Londres e codiretor do estudo. Sua equipe trabalha agora na edição genética de células humanas em laboratório para tentar reproduzir as mutações de Jo Cameron e entender melhor seus efeitos.

Os pesquisadores recordam que o caminho para novos tratamentos não será fácil. Já em 2001, cientistas dos EUA mostraram que ratos modificados geneticamente para não gerar a enzima FAAH apresentavam elevadas quantidades de anandamida, a substância vinculada à felicidade. Entretanto, recentes ensaios clínicos com compostos inibidores da FAAH fracassaram. Em 2016, um destes experimentos, na França, acabou com cinco pessoas em estado grave, uma delas com morte cerebral.

Apesar de tudo, Jo Cameron vê o futuro com entusiasmo. “Há muitíssimas pessoas que sentem muita dor. Ficarei muito feliz se minha genética ajudar a encontrar uma maneira natural de reduzir seu sofrimento”, acredita. Não podia ser de outra maneira. Cameron carrega o otimismo no cérebro.