Militantes políticos adversários possuem algo em comum: inépcia e identidade autoanulada

Imagem ilustrativa.

INALDO BRITO | A nova onda que surgiu no final da década passada, e que muitos ainda surfam como se fosse o manjar turco das descobertas, é a desconfiança absoluta perante o que não nos agrada. Se, antigamente, as pessoas agiam com aceitação absoluta ao que lhes era apresentado, a partir da década passada elas começaram a se posicionar no outro extremo, que é desconfiar absolutamente de qualquer coisa, principalmente se a fonte for o que ela mesma já sentenciou como “lixo”.

No campo político, boa parte das pessoas sempre foi (e ainda é) militante cega de certos políticos ou partidos, ainda mais se eles surgem prometendo-lhes o impossível a qualquer custo. Sabedores dessa situação, tais candidatos sempre buscaram sedimentar essa militância a favor de si mesmos colocando-a na linha de frente contra empresas, instituições ou figuras públicas que, de alguma forma, fossem críticos severos de tais políticos. Um caso ainda fresco na memória de muitos foi o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula.

No primeiro caso, a desconfiança absoluta dos correligionários da ex-presidente e do partido que ela integrava se posicionou tanto perante órgãos de controle como até mesmo do próprio Congresso. Qualquer um que tecesse considerações sobre a licitude do impeachment – sendo favorável ao mesmo – já era automaticamente tachado como “golpista”, conquanto pouca atenção fosse dada aos argumentos apresentados. O famoso adágio “Globo golpista” se tornou bastante popular no círculo do partido, já que este veículo de comunicação era visto mais como um grupo sensacionalista do que preocupado com a informação.

No segundo caso – a prisão de Lula –, asseclas detrataram a Polícia Federal, o juiz encarregado pela autorização do encarceramento, além dos próprios delatores que confessaram como se dava a atuação do ex-presidente nos bastidores do poder, os quais muitos desses delatores foram integrantes tanto do ex-governo como do próprio Partido dos Trabalhadores. Semelhantemente ao primeiro caso, muitos militantes e manifestantes que pediam a soltura do condenado não eram muito solícitos com a imprensa. Mais tarde, bastava alguém dizer que era favorável à prisão do ex-presidente para ser automaticamente tachado de fascista, e “com fascista, não se discute”, conforme os próprios militantes e defensores do ex-presidente sempre gostaram de deixar claro.

Nesses dois casos, no final da década passada, estava presente o fator desconfiança absoluta. Infelizmente, esse fator pode até ser tachado por muitos como algo que nos remete a duvidarmos de tudo, só que há um equívoco básico aí. Duvidar de tudo é trabalho para o cético, que por mais que não concorde com determinado fato ou argumento, ainda assim tolera ouvir o que está sendo narrado para, aí sim, expor o seu ceticismo de uma forma muitas vezes lógica, racional e com uma leve pitada de fé. A desconfiança absoluta, por outro lado, duvida apenas daquilo que ele mesmo não aceita como verdadeiro. Alguns poderiam dizer, então, que isso está mais para desconfiança relativa, mas quando digo desconfiança absoluta é por que quem assim age, acaba absolutizando sua própria desconfiança como se fosse algo hegemônico, conquanto muitas vezes prefira agir com argumentos pueris para tachar os outros como “lixo”, caso não se enquadrem com o que ele pensa ou defende, por exemplo.

Recentemente, vemos isso na ala bolsonarista do atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Seus correligionários e militantes, apesar de sempre terem criticado as atitudes desrespeitosas dos militantes do Partido dos Trabalhadores perante órgãos de controle, instituições e veículos de comunicação, acabam por agir de forma semelhante atualmente. O fato, por exemplo, de algumas manifestações pedirem o fechamento do Congresso, a “volta” do “governo militar” e até mesmo gritar palavras de ordem contra grupos de imprensa – “Globo lixo”, por exemplo – são faces de uma mesma moeda que estava (e ainda está) presente na militância petista, com as suas devidas proporções.

O lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” tornou-se um mero amuleto para os bolsonaristas militantes quando querem justificar suas ações desrespeitosas, caluniadoras e, em muitos momentos, autoritárias. Qualquer um que teça críticas a essa postura, a atitude tomada pelos militantes é das duas uma: ou começam a expressar frases como “Se não apoiar o presidente, a esquerda volta!”, “Chora esquerdista!”, “Bolsomito!” etc. ou automaticamente já podem tachar você como um inimigo da pátria. Não é surpresa que a desconfiança absoluta que tais asseclas possuem propicie uma blindagem ao Governo, em que qualquer menção a seus equívocos ou erros já coloquem um alvo nas costas daquele que expôs tais incongruências.

O caso “Globo lixo” talvez seja o mais emblemático dessa postura de desconfiança absoluta da militância bolsonarista. E aqui é preciso deixar claro que já faz um bom tempo que não assisto TV, principalmente aos canais da TV aberta e ainda mais especificamente a Globo – conquanto essa minha explicação provavelmente nem seja levada em consideração pela militância bolsonarista. Tenho minhas queixas não apenas com a Globo em si, mas com boa parte dos veículos de comunicação da TV aberta que possuem uma programação que não é voltada para a intelectualidade, o que, até a época em que ainda assisti alguns desses canais, tal condição não havia se alterado.

Para os bolsonaristas, qualquer notícia que apresente simultaneamente no link os caracteres “G” e “1” já é automaticamente rechaçada sem nem mesmo se ler a matéria. Faça um teste e compartilhe uma notícia exibida no portal G1 de um assunto que já é conhecido internacionalmente, e que já foi veiculado nos demais veículos de comunicação brasileira, e veja se não vai surgir aquele que você sabe ser um militante bolsonarista pra expor seu mantra básico: “Globo lixo”. É quase automático na cabeça do militante, como se fosse um tipo de lavagem cerebral ou hipnose, em que ao menor som ou ao ver uma imagem, seu “objetivo de vida” é despertado – o que, no caso da militância bolsonarista, é tudo aquilo que se remete a um veículo de comunicação.

Lembro-me da época de um grupo de Whatsapp, que eu fazia parte, em que um integrante – militante bolsonarista – colocou uma notícia no grupo de um suposto evento em que apareciam dois sóis num determinado lugar da Terra. Ao ir atrás do presente fato, descobri que essa notícia era falsa e que já haviam desmentido tal imagem. Encontrei até uma entrevista de um pesquisador da USP comentando passo a passo o porquê daquela imagem ser falsa. Depois que publiquei essa entrevista, com dados e fatos, no grupo, tudo o que o militante foi capaz de falar era que aquela entrevista também deveria ser falsa, sabe por quê? Porque tinha sido veiculada no portal G1 da Globo. Se é da Globo, então ou é falsa ou é lixo, conforme raciocina o militante.

A desconfiança absoluta com que a vida de muitos tem sido pautada e conduzida, no fim, revelar-se-á como sua própria sepultura intelectual. E essa ode à inépcia pode acometer qualquer um que, em vez de exercer sua racionalidade perante, principalmente, políticos, prefere devotar não apenas sua capacidade cognitiva a eles, mas até mesmo sua própria identidade. O cidadão que possui desconfiança absoluta a tudo aquilo que é contrário ao que ou a quem ele venera na política torna-se um ser que atrelará sua postura intelectual, seu modo de vida e de pensar, ao que o grupo militante que ele integra assim diz que é “certo” ou “errado”, conquanto tais termos sejam baseados mais na concepção dos líderes do grupo, sobre o que é poder, do que naquilo que de fato é justo metafisicamente falando.

É por isso que, para o indivíduo que padece de desconfiança absoluta, somente o político que ele venera é invulnerável a ser alvo dessa desconfiança, pois essa é uma ação para ser feita contra qualquer um que tenta pôr em risco a identidade daquele que ele venera. Para esse indivíduo, qualquer matéria, notícia ou opinião em que houver algum indício de ser contrária às decisões ou imposturas do seu totem político será tratada como fake news, complô para derrubá-lo do poder ou traição institucionalizada.

Embora muitos insistam em negar agir dessa forma, infelizmente seus atos acabam falando mais do que suas meras palavras. Alguns optam por fazer diferença entre defender os supostos “atos heroicos” do seu político em vez de exaltá-lo como um herói em si mesmo, ressaltando que agem mais com base no primeiro caso, em que defendem as decisões administrativas tomadas pelo seu totem político em detrimento de algumas das suas posturas perante imprensa ou diversos órgãos institucionais, mesmo elas sendo impróprias muitas vezes. No entanto, o que acontece é que o indivíduo já está tão imerso nesse tipo de falácia que basta alguém do grupo que ele defende lançar uma justificativa das mais mirabolantes e criativas possíveis sobre qualquer decisão ou atitude incoerente tomada pelo totem político para ser suficiente a ele se posicionar favorável ao “ato heroico”, conquanto no fundo esteja defendendo, blindando e justificando ineptamente o seu próprio “herói” (ainda que a princípio negue tal atitude).

Em suma, seja na esquerda ou na direita, inclusive no centro, haverá quem persista em criar “mitos”, “messias” e “salvadores da pátria” para satisfazer a sua própria definição do que é ser representado democraticamente, embora a tendência seja acabar atrelando sua própria identidade à daquele que ele deposita suas expectativas e esperanças. E quando isso acontece, mal sabe o cidadão que já se colocou no caminho da desconfiança absoluta quanto a tudo que seja noticiado, informado e opinado contra o seu ídolo político, independentemente se seja verdade ou mentira. Ele se tornou meramente um instrumento cujo único propósito é defender a necessidade de ser manipulado por alguém.