Nem vírus derruba a cleptocracia

Imagem ilustrativa.

INALDO BRITO | Desde que o país entrou para a lista de afetados pelo Covid-19 vemos que continua um certo hábito, presente predominantemente na classe que mais atrapalha a vida dos cidadãos – classe política –, cujo objetivo se caracteriza por arrumar sempre um modo de se “beneficiar” a qualquer custo. Enquanto que em países como Nova Zelândia o governo de imediato reduziu os próprios salários a fim de diminuir os impactos econômicos sobre a população, advindos de uma possível continuação nos gastos públicos naquilo que não era o mais importante, aqui no Brasil vimos (e vemos) uma atitude bem oposta – os nobres governantes sequer cogitaram “cortar da própria carne”, pelo contrário, propostas de lei absurdas, antes adormecidas, voltaram a ser mencionadas como formas de conter uma possível recessão econômica, entre elas taxar grandes fortunas, imprimir dinheiro e criação de impostos.

Isso é só mais um exemplo de como os interesses de quem possui o poder político se apresentam majoritariamente superiores aos interesses tanto da região que se governa como de quem é governado. Somos um país que, por mais que se negue, a corrupção já virou patrimônio nacional. Ela é endêmica e, por ser endêmica, a população finge que não vê e quem rouba finge que foi sem querer.

Mal havia decorrido um mês desde que o país tinha sido acometido pela doença e escândalos de aquisições superfaturadas de equipamentos vieram à tona. Respiradores de péssima qualidade ou qualidade duvidosa eram adquiridos por cifras absurdas que sequer eram condizentes ao valor que tais itens possuíam. Se a farra do superfaturamento já ocorria num ambiente normal, onde licitações eram fraudadas descaradamente, imagine o que os responsáveis pelos cofres públicos não fariam tendo agora passe livre para contratar empresas ou adquirir itens sem a necessidade de licitações?!

Uma das situações em que é possível comprar ou contratar sem licitação é justamente no caso de calamidade pública, como a que acontece atualmente no território nacional devido ao Covid-19. No contexto brasileiro muita coisa é linda e bem feita na teoria, só que na prática, na maioria das vezes, se mostra como uma criatura feia e desengonçada. Assim o é, por exemplo, o SUS (Sistema Único de Saúde), que em teoria é quase comparado a uma obra de Rembrandt, mas só quem o utiliza, na prática, sabe que é mais parecido com um garrancho de uma criança de dois anos. Muitos objetam que o SUS só é assim por conta dos desvios de recursos públicos e do descaso das administrações locais. Sim, está correto! Por isso mesmo, então, é que a população média não deveria exigir a injeção de mais verba pública nas mãos dos gestores, já que boa parte dela não será alocado onde se deve, antes o menos ruim seria distribuir estes recursos diretamente à população de baixa renda para que ela pudesse escolher onde ser atendida. Ao citar essa opção para um conhecido (ele mesmo um defensor do SUS), ele objetou dizendo que entregar o recurso diretamente nas mãos da população seria pior porque poderia haver um crime ainda maior que seria o que envolve assédio político. Como resposta, eu disse a ele que para isso é necessário criar ferramentas que mitiguem esses riscos, a fim de não acontecer como ocorreu com o bolsa família, mas ainda assim seria melhor dar à população a opção da escolha do que simplesmente restringir a ela um sistema falho e que é alvo da cleptocracia tupiniquim.

Voltando ao assunto inicial, a questão é que mesmo uma lei como a de licitações, que conquanto tenha sido criada para reduzir possíveis fraudes em contratações, também acabou se tornando uma das que mais tem sido utilizada para se praticar crimes na administração pública, justamente por que os criminosos conseguiram burlar o mecanismo de neutralidade e imparcialidade da lei. É por isso, por exemplo, que, mesmo a lei proibindo o cartel nos processos de licitação, muitas empresas (inclusive as de fachada) continuam se juntando para cartelizar várias contratações públicas. Essa foi uma das investigações exitosas que a Operação Lava Jato conseguiu desarticular. No entanto, quando a desarticulação ocorreu, o estrago já tinha sido feito: políticos e empresários corruptos faturaram alto com diversas obras superfaturadas oriundas de licitações irregulares.

O que está ocorrendo atualmente com tantas aquisições de equipamentos e contratações sendo feitas sem a necessidade de licitação, por conta do estado de calamidade pública, provavelmente sempre foi o que políticos corruptos sempre desejaram, tendo em vista que numa situação como essa a população pouco prestará atenção às altas cifras desembolsadas para a demanda emergencial, contanto que o que se espera seja atendido minimamente – compra de EPI’s, equipamentos médicos, remédios etc. Perceba que esse pensamento da população é o que ela exerce normalmente no dia a dia. Para nós, não importa muito se há o desvio de verba ou de recurso público, contanto que pelo menos uma parte seja utilizada no que a população carece. O famoso ditado “rouba, mas faz” é o que tem pautado nossa relação com a política e com políticos.

Não é de surpreender que certos políticos ainda continuem com esse hábito cleptomaníaco, mesmo num momento tão sensível como o que passamos. O que tais políticos cleptocráticos puderem fazer para perpetuar a locupletação e a gastança indevida, eles farão, nem que pra isso até mesmo o próprio combate ao Covid-19 seja transformado em matéria de política pública contínua, reforçando o que disse certa vez o Nobel de economia Milton Friedman: “Nada é tão permanente quanto um programa temporário do governo”.