O absurdo de tornar conselhos profissionais mais importante do que os profissionais

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INALDO  BRITO | A cena se repete todos os anos nos círculos universitários. Centenas de alunos colam grau, recebem o diploma, e estão aptos a exercer a profissão que tanto sonharam. Seria uma história perfeita se não fosse por uma pedra no meio do caminho, e essa pedra, para muitos cursos, é o conselho ou órgão de classe daquela carreira pretendida.

A ideia da existência dos conselhos de classe pode até ser bem intencionada - regularizar a atividade profissional na sociedade, de forma a manter a qualidade dos serviços oferecidos -, mas na prática o que se vê é uma forma fácil de arrecadação de dinheiro dos que são obrigados a se  filiar para exercerem aquela profissão, isso quando o próprio órgão classista não se torna um simples instrumento político para partidos e servidores públicos corporativistas.

Desde as Corporações de Ofício criadas no século 12, em plena Idade Média, para associar artesãos e, posteriormente, carpinteiros, sapateiros etc., os órgãos de classe têm contribuído para um tipo de reserva de mercado, em que os únicos que podem atuar naquela profissão específica são os filiados ao respectivo conselho profissional da atividade. Não se leva em consideração os conhecimentos técnicos que aquele trabalhador possa ter, ou o domínio do ofício pretendido. Pelo contrário, a única exigência é o diploma e o pagamento da taxa de filiação.

A justificativa principal dos conselhos de classe é que deve-se propiciar à população um grau satisfatório de confiança referente ao profissional que se está contratando. Ou seja, para o conselho de classe, é suficiente para os leigos saber que aquele profissional está vinculado ao órgão de classe de sua profissão, independentemente se ele desempenha bem ou não o serviço contratado. E, por isso, contratar ou se consultar com um profissional que possui diploma e vínculo ao conselho de classe torna-se mais preferível do que se envolver com quem não possua tais atributos.

Não importa se você entende de economia, ou até já tenha escrito livros na área (como o era Mario Henrique Simonsen), pois se você não tiver um diploma do curso e for filiado ao conselho de classe, então não poderá ser chamado de economista nem tampouco dar aula em tal curso. Não importa se você entende sobre futebol, vôlei ou qualquer outro esporte com bola, pois você não vai poder dar aula para as crianças do seu bairro, caso não seja filiado ao conselho de educação física. Não importa se você estuda e entende as leis criminais, pois se você não for filiado à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), então não poderá defender judicialmente ninguém.

Os órgãos de classe hoje representam um dos obstáculos para a liberdade de escolha do indivíduos, seja do profissional recém-formado, seja dos próprios cidadãos que precisam desses serviços. No afã por querer proteger a população de serviços precários acabaram criando um mercado elitizado e extremamente caro. A OAB, por exemplo, possui uma tabela de preços para os serviços oferecidos pelos advogados, a fim de, segundo a entidade, não precarizar a profissão. Com isso, aquele profissional recém-formado, sem experiência nenhuma no mercado, dificilmente conseguirá clientela cobrando o valor que é tabelado pelo órgão de classe, não lhe deixando alternativa senão associar-se com colegas de profissão, tornar-se empregado em escritório (comumente chamado de sócio pela empresa a fim de não enfrentar processos trabalhistas) ou fazer concurso.

O que quero dizer em relação à liberdade de escolha dos cidadãos que precisam dos mais variados serviços profissionais é que eles deveriam poder contratar o profissional utilizando seus próprios critérios (preço, competência, afeição, localização geográfica etc.). Se por ventura o estudante de nutrição - que ainda não se formou, mas que possui os conhecimentos necessários para realizar consultas e elaborar dietas nutricionais -  começa a oferecer seus serviços à população do seu bairro por um preço menor do que o que se cobra no mercado, e essa população se dispõe a pagá-lo, então isso não deveria ser visto como crime ou "exercício irregular da profissão", já que as partes contratantes estão cientes do que foi firmado e do que será feito. Crime seria se o estudante dissesse algo que não é verdade para a população, e, assim, os enganasse.

Se o cidadão prefere se consultar ou contratar um profissional que não é formado naquela atividade ou não é filiado a algum conselho de classe, a sua escolha deveria ser respeitada da mesma forma que deveria se respeitar o exercício daquela profissão por parte do não formado ou filiado que possui tais conhecimentos. A questão sempre é liberdade com responsabilidade. Se o cidadão opta por se consultar com um profissional que não é médico, mas se diz ser, sabendo o cidadão do que está fazendo e sido aconselhado por  terceiros, então ele tem que arcar com as consequências daquilo, ele tem que ser responsável por suas ações, assim como o profissional que não é médico. 

O que os órgãos de classe fazem é cercear a liberdade dos indíviduos, minando também a responsabilidade pelas decisões que tomam e atos que cometem. Quando a mera filiação torna-se exigência para o exercício da profissão, abre-se um pressuposto de que mais vale o credenciamento profissional do que o conhecimento técnico adquirido. É a cultura do diploma transformando-se na cultura da filiação classista. É a falácia do argumento de autoridade migrando da universidade para o mercado restrito dos profissionais filiados. É a manutenção do cabresto corporativista. Enfim, é retornar à Idade Média, ou pelos menos a uma parte dela.