Quando o hábito alimentar se torna idolatria

Imagem ilustrativa.

A “alimentação saudável” está na moda, ultimamente. Orgânicos, integrais, gluten-free, sem lactose, comida vegana e tudo aquilo que se enquadre na dieta do momento são os que mais fazem sucesso. É importante que se diga que buscar uma alimentação saudável é louvável, tal como integrá-la a atividades físicas. Reeducação alimentar é o princípio de qualquer vida saudável. No entanto, é de se preocupar quando o hábito de dentro de casa tenta ser imposto, seja por leis ou proibições, acarretando na obstrução da liberdade de escolha dos demais.  

O ramo dos produtos industrializados tem se tornado um vilão para os grupos de “alimentação saudável”. É recorrente a pressão que tais grupos exercem sobre as indústrias alimentícias ou produtores de pequeno porte, tentando impor uma agenda que busca tolher a liberdade de escolha dos indivíduos acerca do que comer ou não. A indústria alimentícia, como a conhecemos hoje, é fruto da Revolução Industrial, em que fábricas, percebendo o aumento da população mundial – e, consequentemente, a diminuição da oferta de alimentos in natura –, começaram a produzir alimentos em grande escala, seja como matéria-prima natural ou transformada. O que era antes restrito a apenas alguns poucos estabelecimentos manufatureiros de alimentos foi ampliado para as indústrias que conseguiam produzir mais em menos tempo. Hoje, os grupos militantes da “alimentação saudável” pretendem fazer o caminho inverso, nem que pra isso exijam leis que dificultem tanto a produção como a comercialização dos alimentos industrializados.  

Nicholas Vital escreveu um livro chamado Agradeça aos agrotóxicos por estar vivo, em que demonstra como a militância dos alimentos orgânicos demonizou a utilização de defensivos agrícolas nas lavouras de frutas, verduras e legumes a tal ponto que utilizam dados imprecisos e pesquisas manipuladas para defender o banimento dos agrotóxicos. Vital mostra como até mesmo teses de doutorado são elaboradas por alunos (e aprovadas por orientadores) que possuem esse viés militante na defesa dos orgânicos e ódio aos inorgânicos produzidos com agrotóxicos, chegando ao ponto de influenciar até os próprios órgãos de controle da agricultura (MAPA e Anvisa). Apesar do título, Vital não conclama a sociedade para defender cegamente o uso do agrotóxico, mas sim compreender a importância e o meios seguros de sua utilização. Um detalhe faz com que pessoas que militam pelos orgânicos não deem muita importância ao livro: Vital é jornalista. Ele não é formado em Nutrição, Educação Física, Tecnologia de Alimentos, Gastronomia ou cursos afins. Seu livro é baseado em entrevistas com professores, empresas, produtores e cientistas das mais variadas áreas de alimentos, além de extensa pesquisa em estudos, artigos e divulgações em congressos e na mídia, correlatos ao assunto. Para os grupos militantes, o contraditório ou a visão destoante às ideias propagadas, se for pra ser levada em conta (quase nunca é), só pode ser se advinda de alguém da área. Do contrário, é descartada, ridicularizada e/ou estigmatizada. 

A preocupação exacerbada dos pais com o que é distribuído nas cantinas das escolas atingiu um novo patamar quando leis proibindo a comercialização de refrigerantes e outros produtos industrializados foram sancionadas. Para esses pais, negar ao filho dinheiro para comprar alimentos na cantina não era suficiente. Se isso já não bastasse, alguns pais adeptos da “alimentação saudável” se reúnem e fazem campanhas nas redes sociais contra escolas que não monitoram o horário do recreio em que seus filhos acabam trocando alimentos com o colega. Para esses pais, se o filho não come a refeição orgânica preparada com carinho, mas prefere trocá-la pelo biscoito de maisena do colega, a responsabilidade deve recair sobre o colégio. É desse tipo de situação que nasce absurdidades legislativas que visam tão somente satisfazer grupos como os da “alimentação saudável”. 

Não advogo que a alimentação seja esculachada ou bagunçada. É mais que necessário que as pessoas saibam como se alimentar bem. No entanto, creio que isso não vai acontecer pela simples imposição de uma lei proibindo isso ou aquilo de ser comercializado. O que defendo é que haja a liberdade de escolha do indivíduo adulto acerca do que comer ou não. Uma coisa são os pais criarem os filhos num ambiente sempre regrado por alimentos orgânicos ou veganos. Outra coisa bem diferente são esses mesmos pais quererem interferir naquilo que é comercializado só por que não é o que eles consomem, e passam a exigir proibição da venda, achando que o resto da sociedade gosta do mesmo que eles, ou que pode adquirir esses produtos com a mesma facilidade e baratos.  

O equívoco de pessoas que militam pela “alimentação saudável” parece ser não viver na realidade. Os valores de venda desses produtos orgânicos, por exemplo, chegam ao triplo dos alimentos comuns. Os militantes acham que o barateamento pode ocorrer caso aconteça um crescimento na oferta desses produtos que (na visão deles) será impulsionada pela sanção de uma lei proibindo agrotóxicos, alimentos industrializados, açúcar ou tudo aquilo que possa ser considerado como um vilão para a saúde. No entanto, para que essa oferta cresça, é preciso que o produtor tenha garantias suficientes de que haverá grande procura por esses produtos – e essa é a parte difícil de mensurar, cujos grupos militantes não levam em consideração. Só pode haver crescimento da demanda por uma razão: ato voluntário da população em querer adquirir aquele item. Entretanto, parece que para os super-defensores da “alimentação saudável” o que faz crescer a demanda é um ato coercivo de um grupo sobre os demais.  

É bom que fiquem cientes de que mais cedo ou mais tarde essa idolatria pela “alimentação saudável” pode acabar complicando as relações interpessoais. Novamente, uma coisa são os pais criarem os filhos com esse tipo de dieta ou alimentação em casa. Outra coisa bem diferente são eles exigirem que todo lugar, aonde vão com seus filhos, desde festas de aniversário a visitas familiares, também esteja servindo os mesmos alimentos nutricionais que eles consomem em seus lares. Em alguns momentos, pode beirar o ridículo de enviarem seus filhos a aniversários com uma lista informando o que não devem comer - não é de surpreender que englobe tudo aquilo que há na festa.  

Indivíduos com tal visão acabam se dando muito melhor com outros que possuem vidas semelhantes – isso acontece com qualquer pessoa. O perigo está em achar que o mundo deve se curvar às exigências deles, exigências estas que fluem desde liberar filhos para festas que só servem comidas “saudáveis” ou até mesmo obrigar estabelecimentos a só servirem o que se enquadra na dieta nutricional que possuem, em vez de ampliar a variedade do que é ofertado (o que aí sim, eu apoio, tendo em vista que dá mais opções de escolha para todos).  

Criar filhos com esse tipo de hábito não dá garantias seguras de que eles seguirão isso à risca à medida que crescem e interagem com outras pessoas. É o mesmo que levá-los à igreja toda semana e achar que eles irão continuar nela à medida que crescem. Para tudo isso, há sempre duas possibilidades: continuar ou abandonar. Pais adeptos da “alimentação saudável” parecem não cogitar essas duas possibilidades para seus filhos. Para eles, só existe uma, que é o filho obrigatoriamente continuar com esses hábitos. E é essa cegueira mesclada com idolatria no comportamento dos pais, face a tais possibilidades, que os faz naufragarem e se frustrarem quando a realidade bate à porta.