Ao povo, privação. Aos servidores do povo, privilégios
Imagem ilustrativa.
INALDO BRITO | Há um ditado que diz: “Quanto mais se tem, mais se quer”. Talvez isso defina bem a ganância por mais e mais privilégios que determinadas classes da população brasileira possuem, tratando qualquer tipo de benefício ou concessão como um direito de fato a ser atendido. Esses privilégios não fazem parte apenas de classes “superiores” (políticos, magistrados, oficiais), mas também de indivíduos e categorias menores do funcionalismo público, contrapondo ao que é tolhido da população em geral. Tal processo top-down se assemelha com a resina que escorre de uma árvore alcançando determinadas partes de sua estrutura, mas não ela toda.
Há um misto de vanglória e arrogância entre as elites do funcionalismo público, e que também flui para os servidores de cargos inferiores, cuja ênfase para a importância do seu trabalho não é colocada no fato de ser um “servidor do povo”, mas sim que, por haverem gabaritado uma prova de um concurso, já é motivo suficiente para se comportarem como mini-deuses – o Olimpo é o Estado; e os sacrifícios para apaziguar suas frustrações ou mal humor no trabalho são os benefícios e privilégios cada vez mais exigidos.
No que diz respeito aos políticos, o direito camuflado de privilégios é mais bem observado quando vem à tona a questão do foro privilegiado, que eles possuem enquanto detentores de mandatos. Enquanto para o político criminoso há julgamentos especiais, em cortes especiais com tratamentos especiais, para o criminoso comum resta-lhe o julgamento padrão. Segundo a Constituição Federal, todos são iguais, mas parece que só até se tornar político. Não é à toa que muitos desses criminosos políticos, para fugir dos julgamentos comuns, procuram de todas as formas perpetuar seus mandatos com qualquer tipo de cargo, desde que lhes garantam o tratamento especial e privilegiado para os crimes que cometem. Vale até nomeação de última hora para uma função no governo.
Outro privilégio que os servidores do povo possuem é o chamado Regime Próprio de Previdência. Basta você estar empossado em algum cargo público (federal, estadual ou municipal) que ele já lhe conduz da vala comum para o mausoléu das Previdências. Todos somos iguais, segundo a Constituição, mas só até passar em um concurso ou for comissionado para essa esfera pública. Para alguns grupos especiais vale qualquer coisa para manter seu próprio regime de previdência, até mesmo mentir e enganar sobre os benefícios de uma Reforma da Previdência, que começaria estabelecendo um teto único para todos e o corte de privilégios nababescos.
Até mesmo coisas comuns do cotidiano de cada pessoa acabam se tornando alvos dos tentáculos de classes, grupos e corporações que reivindicam tratamentos especiais só por pertencerem àquelas categorias. Uma dessas coisas é a gratuidade de acesso a terminais ou serviços de transportes públicos. Em Recife/PE, por exemplo, o usuário dos terminais BRT (Bus Rapid Transfer) se depara com uma placa informando que policiais, carteiros, oficiais de justiça e oficiais da Justiça do Trabalho têm acesso gratuito à estação. Basta apresentar a carteira de identificação do respectivo órgão que não precisa pagar os R$ 3,45 (esse é o valor para ingressar no terminal).
O interessante é que todos esses trabalhadores são funcionários públicos. Entre esses, talvez, o que ganhe menos (e se arrisque mais no emprego) seja o policial, mas não justifica de toda forma o seu privilégio em acessar gratuitamente o local. Antigamente o acesso de policiais era permitido apenas no exercício de sua função, devidamente fardado. A partir de 2008/2009 uma Portaria da empresa que administra os transportes urbanos na cidade liberou para que mesmo policiais de folga também tivessem tal direito.
O maior contrassenso entre esses trabalhadores é o dos oficiais de justiça. A média salarial de tal cargo é entre sete e onze mil reais, fora outros benefícios. Dificilmente você verá um oficial de justiça usufruindo do transporte público. A maioria já possui seus veículos, às vezes podendo utilizar veículos da própria instituição. Então, por que colocá-lo também em tratamento especial nesse tipo de serviço público de transporte? Podem até haver explicações bem elaboradas, com malabarismos na lei, mas ainda assim não deixa de ser um privilégio imoral e insensato.
Esse tipo de tratamento dado a determinadas classes e grupos do funcionalismo público conta com o acobertamento e apadrinhamento de representantes de entidades sindicais, patronais e, sem nenhuma surpresa, políticos lobistas. O que os grupos de servidores de cargos inferiores fazem é replicar aquilo que veem no andar de cima. Se ministros aprovam por conta própria o aumento de seus salários e pagamento de benefícios, logo se vê articulações políticas para aumentar os salários de deputados e senadores. Parafraseando Orwell, enquanto os porcos do andar de cima garantem refeições ainda maiores e gordas, os porcos do andar de baixo exigem um pouco mais de alguns benefícios e privilégios, na forma de migalhas, mas que ainda os fazem salivar e se saciar (temporariamente).
O crescimento do funcionalismo público tem gerado o ensoberbecimento de muitos daqueles que deveriam servir o povo. O famoso “Você sabe com quem está falando?” tem se tornado mais frequente do que se imagina. A impressão que dá é de que não se pode mais questionar o policial por seu abuso; não se pode mais pedir a um juiz ou ministro que abra sua mala para alguma inspeção no aeroporto; não se pode falar alto com o servidor que lhe trata com indiferença; e não se pode mais discordar do professor da rede pública na sala de aula.
O salário mínimo atual situa-se em pouco mais de mil reais. Trabalhadores comuns conseguem se virar como podem para sustentar família, pagar o ônibus para chegar até o local de trabalho ou retornar para casa. Não possuem tratamento especial no acesso ao transporte público. Não possuem tratamento especial na fila do banco ou de alguma repartição pública. Não possuem tratamento especial no aeroporto ou no estádio de futebol. Esse trabalhador comum, além de pagar a própria passagem, acaba tendo que pagar (indiretamente) a do funcionário público que é privilegiado com a gratuidade no acesso. Um privilégio legalizado não deixa de ser imoral.
É justamente por haver tantos grupos privilegiados e com tratamento especial no funcionalismo público que o déficit público aumenta a cada ano. Tais castas se veem como merecidos de tamanhas vantagens. O privilegiado não respeita o senso comum, tampouco as leis econômicas. O privilegiado apelará para o emocionalismo, a fim de justificar os seus "direitos". Para o privilegiado, ter o suficiente nunca é o bastante. Essa mentalidade sanguessuga possui duas filhas: Dá e Dá (cf. Provérbios 30.15). Acabar com esses privilégios e colocar o funcionalismo público no seu devido lugar como “servidor do povo”, e não mais espoliadores, deveria ser o primeiro passo para se estabelecer o que é realmente necessário e o que é supérfluo. Mas se o supérfluo vira lei, fica difícil a sangria e as regalias terem um fim.
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