Bolsonaro se apequena ao dizer que sabe como se matava e torturava na ditadura

Jair Bolsonaro ao lado do vice-presidente Hamilton Mourão no Palácio do Planalto. ADRIANO MACHADO / REUTERS.

Cabe perguntar como e por que ele conhece os horrores de um tempo que a grande maioria dos brasileiros preferiria que nunca tivesse existido

Não sei se os brasileiros e o mundo se interessam em saber que o presidente Jair Bolsonaro conhece até os mínimos detalhes de como torturavam e matavam na ditadura. Não se trata de um segredo. Foi ele mesmo quem revelou. Sabia-se que era um defensor da ditadura militar e dos seus mortos, do mesmo jeito que era conhecida a sua admiração pelos torturadores. O que ele próprio agora acaba de dizer é que conhece as minúcias de como se torturava e matava no Brasil durante aquele período obscuro.

A revelação da sua intimidade com os métodos de tortura e execução durante na ditadura veio da própria boca de Bolsonaro por ocasião de seu entrevero com o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, afirmou Bolsonaro.

Santa Cruz tinha dois anos quando seu pai desapareceu para sempre, levado, como tantos outros, pela ditadura militar, acusado de ter participado da luta armada — embora não figure como membro de grupos armados no registro da Comissão da Verdade, responsável pela análise dos fatos daquele período.

Agora, os brasileiros sabem não apenas que Bolsonaro nunca escondeu suas simpatias pela ditadura e seus métodos, mas que também conhece muito além do que se imaginava sobre as atrocidades cometidas. Cabe perguntar como e por que ele conhece os horrores de um tempo que a grande maioria dos brasileiros preferiria que nunca tivesse existido. Não é difícil imaginar o que o presidente da OAB, que tinha dois anos quando seu pai foi torturado e morto, teria sentido ao ouvir dos lábios do presidente da República que ele sabe como seu pai morreu. E que pode lhe contar.

No livro Memórias de Uma Guerra Suja, do ex-policial do DOPS Cláudio Guerra, lê-se que o pai do presidente da OAB foi “incinerado no forno de uma fábrica de açúcar em Campos”. Agora Bolsonaro insinua que sabe mais sobre aquele assassinato e ameaça contar ao filho, o que causa aflição e revela uma veia de desumanidade em quem deveria, por seu cargo, dar, ao contrário, um exemplo de defesa da paz e da harmonia entre todos os brasileiros.

Continuar com a política suicida de dividir os cidadãos, apresentando-se sempre como próximo de tudo o que cheira a violência, desafio e uso das armas, só pode fazer com que até as pessoas que um dia confiaram nele para conduzir o destino do país hoje se sintam arrependidas e escandalizadas.

Se um presidente da República não entende que, uma vez eleito, deve ser não só o responsável pelo país, mas também por todos os brasileiros, e que deve propiciar paz ao invés de semear discórdias, os resultados podem ser perversos.

Minha esperança é que o desafio de Bolsonaro ao presidente da OAB, de revelar a forma atroz como mataram seu pai, possa criar um calafrio de medo e desilusão na grande maioria dos brasileiros que nunca teriam querido que alguém brincasse de desafiá-los contando como torturaram seus pais. Há sentimentos humanos que devem superar todas as ideologias. Quando, na luta política, perdemos o senso de dignidade e respeito pelo outro, abrimos o caminho que, ao longo da história, forjou os monstros da crueldade.

A revelação macabra de Bolsonaro ao presidente da OAB, de que ele sabe como eliminaram seu pai e pode contar se quiser, me fez lembrar de uma história ocorrida durante a ditadura do general Franco, na Espanha, quando se torturava e matava. Terminada a refeição, apresentaram ao Generalíssimo a lista dos que seriam fuzilados no dia seguinte. Franco aprovava e se divertia desenhando uma flor em nome de cada um. Em Madri, um advogado amigo meu me contou que uma vez tinham lhe avisado que naquela manhã torturariam uma pessoa com quem ele um dia havia discutido e desfeito a amizade. Ofereciam-lhe a oportunidade de presenciar a tortura e, se quisesse, “até participar dela”. Meu amigo me disse apenas: “São uns canalhas.” Sempre sonhei em ter um dia um presidente capaz de chamar de canalhas os que desfrutam da dor alheia, da vingança e da crueldade.