Comunidades tradicionais ameaçadas por projeto da Codevasf

*Paulo Oliveira.

Os agricultores familiares e pequenos criadores de animais em comunidades de fundo e fecho de pasto Ivete Ribeiro de Lunas, 54 anos, Elenilton Alves Bonfim, 53 e Gildásio Félix Bonfim, 51, saíram das comunidades de Muquém, Poço Fundo e São João, bem cedo para participar de uma reunião para a qual não tinham sido convidados. Antônio Batista de Souza Filho, o Toinho, suplente de diretor do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia, acompanhou o grupo.

Eles se cotizaram e arrecadaram R$ 200 para fretar o carro que os levaria por 140 quilômetros – 98 em estrada de barro e 42 em asfalto mal conservado – até Xique-Xique, onde foi realizada audiência pública sobre o projeto Baixio de Irecê, que pode ser comparado à transposição do rio São Francisco apenas em território baiano, para atender empresários de agronegócios. Lançado em 2013, no governo Dilma Rousseff, e ampliado pelos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro pretende ocupar 105 mil hectares, sendo 48 mil hectares irrigáveis.

Além de ocupar grande extensão de terras tomada por grileiros e privatizar a água do rio, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) ameaça 700 famílias de 18 comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, impedindo que elas criem animais soltos na caatinga, como acontece há mais de um século.

Na audiência desta quarta-feira (9/12), o tema tratado foi a concessão à iniciativa privada de três das nove etapas, sendo que as duas primeiras já concluídas apresentam problemas de difícil solução antes mesmo de entrar em fase de produção, segundo o analista da Codevasf Sérgio Antônio Coelho, responsável pela apresentação do projeto durante audiência pública de concessão, realizada anteontem (9/12).

Depõe contra a Codevasf projeto semelhante finalizado em 1995, entre os municípios de Gentio do Ouro e Ibipeba (BA), no médio São Francisco. Com extensão bem menor do que o Baixio, o projeto Mirorós faz captação de água do Rio Verde, afluente do Rio São Francisco, represado, no início dos anos 1980, com a construção da barragem Manoel Novaes, deputado federal pela Bahia em 12 mandatos consecutivos, falecido em 1992, aos 83 anos.

A represa tinha como finalidade abastecer a microrregião de Irecê, irrigar o projeto Mirorós e perenizar o rio. Estiagens e a degradação da bacia hidrográfica causaram a redução do volume de água. No entanto, ela fez surgir problemas referentes aos usos múltiplos das águas do reservatório, tendo como atores do primeiro conflito a Codevasf e os irrigantes a sua jusante.

A queda da vazão paralisou as lavouras irrigadas, gerando grave crise econômica na região e desemprego, conforme está relatado na monografia “Conflito por uso de água envolvendo a barragem Manoel Novaes (Mirorós) – O caso dos irrigantes no município de Itaguaçu da Bahia”, do geógrafo Tasso Barreto Cunha, da Universidade Federal da Paraíba. Os irrigantes e trabalhadores rurais bloquearam a Rodovia do Feijão (BA-052) com tratores e máquinas para protestar contra as perdas e a desistência dos maiores projetos.

Tasso relata ainda que novos conflitos envolvendo irrigantes, a Embasa (sociedade de economia mista, cujo maior acionista é o governo do estado, responsável pela prestação de serviço de abastecimento de água), agricultores de vazante, pecuarista e prefeituras ocorreram. Hoje, o rio não é mais perene na maior parte do ano, a partir da barragem.

A AUDIÊNCIA

Com transmissão pelo canal do You Tube, representantes da Codevasf e dos ministérios do Desenvolvimento Regional (MDR) e da Economia (ME) começaram a audiência com atraso e com problemas no equipamento de som, o que provocou interrupção de 15 minutos. Havia 30 participantes presenciais quando o analista técnico responsável da companhia Sérgio Coelho pode ser ouvido.

Ele reconheceu que havia questionamentos desde o início do projeto relacionados à falta de infraestrutura nas duas primeiras etapas – energia elétrica e estradas, principalmente. Funcionário da Codevasf há 44 anos, Coelho disse que apresentaria uma modelagem diferente para atender o empresariado, visando o desenvolvimento regional, focado na irrigação. No entanto, deixou claro que os empresários deveriam arcar com os custos da implantação de tecnologia e equipamentos diversos.

Audiência presencial da Codevasf. Foto: Mauro Jakes/CPT

Audiência presencial da Codevasf. Foto: Mauro Jakes/CPT

Representantes de ministérios e da Codevasf.

Representantes de ministérios e da Codevasf.

Sérgio Coelho informou que o projeto surgiu nos anos 1960. Na década seguinte, foi cogitada a transferência da população atingida pela barragem de Sobradinho para a área do Baixio de Irecê, mas a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) optou pela mudança para o atual município de Serra do Ramalho. Na explanação, o analista técnico conta que o plano de instalar grande área de irrigação no local voltou à tona na década de 1980. O Baixio se instalará em 105 mil hectares, com 48 mil ha irrigáveis e vazão de 10,7 metros cúbicos por segundo.

O funcionário da Codevasf disse ainda que a reserva legal do Baixio está ajustada, permitindo o uso de toda mancha de solo como área de plantação e criação de gado. Acrescentou ainda não haver lugar – com exceção das etapas 1 e 2 já desmatadas – para o cumprimento da compensação ambiental. Ele disse que o restante da região está coberta de mata, comprovando que as comunidades tradicionais localizadas no perímetro do projeto preservam a caatinga. A legislação prevê a plantação de duas mudas por exemplar derrubado, principalmente espécies em extinção como a aroeira e a umburana.

O analista fez um balanço da ocupação das etapas iniciais do projeto. A situação da primeira, licitada em março de 2013, é a seguinte: das 53 unidades, entre 6 ha e 318 ha, 46 foram selecionadas e duas estão reservadas para a implantação de um centro de pesquisas. Dos 71, com áreas entre 17 ha e 1.207 ha, 50 propostas foram apresentadas; 21 não tiveram interessados.  Para as 39 unidades entre 30 e 1.170 ha, existem 40 pretendentes. Por fim, das 18 unidades empresariais de 1.605 ha e cooperativas, 13 foram ocupadas.

A dificuldade para a assinatura de contratos está relacionada à falta de energia elétrica e estrada. A Coelba já pediu a ativação do projeto. A concessionária também pretende usar a rede para fornecer energia a empreendimentos no oeste baiano.

A segunda etapa foi licitada em outubro de 2014. O vencedor foi a Associação Irriga Brasil, presidida pelo maior produtor de feijão de corda do país, Moacir Tomazzeti, cujas fazendas principais estão localizadas em Primavera do Leste (MT). Foram adquiridas 23 unidades. O valor da outorga da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) por 35 anos estava calculado em R$ 31,1 milhões. Outras 13 áreas médias foram incorporadas.

As quantias citadas na audiência são estratosféricas. Até o momento o governo federal teria investido R$ 1 bilhão. As etapas seguintes, no entanto, terão que ser bancadas pelo empresariado. A previsão é de investimentos na faixa dos R$ 331 milhões mais ágio (valor cobrado a mais), com parcelamento em 10 anos. Incluindo o maquinário para a colheita e custos diversos, o total chega a R$ 724 milhões.

Nesta fase, funcionários da Codevasf e de outras entidades envolvidas no projeto participavam do bate-papo virtual da audiência, elogiando a iniciativa. Um dos poucos participantes que discordava dos argumentos e dados apresentados chegou a ser censurado pelos mediadores.

O primeiro questionamento relevante feito as autoridades, presencialmente, partiu do presidente do Clube de Diretores Lojistas de Xique-Xique Sandoval Avelino de Oliveira Júnior:

“O projeto tem um erro grave do início. Ele foi concebido em cima de uma estrutura de grilagem de terra. Ela foi tomada e os pequenos agricultores foram expulsos nos anos 1970/1980.  Esse projeto era da Odebrecht e o governo Dilma investiu R$ 100 milhões. Agora a Codevasf, empresa pública quer entregar para a empresa privada. A pergunta que não quer calar: E a estrada. O ex-presidente Temer veio inaugurar o projeto sem fazer a estrada até hoje não concluída. Como será possível escoar a produção sem estrada? – disse.

Adriana Melo, diretora do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) respondeu que o governo não tem recursos suficientes e, por isso, optou pela concessão e por se concentrar nas etapas de 3 a 5. Ela acredita que o setor privado será um grande parceiro e colaborará para que a infraestrutura seja concluída.

O analista Sérgio Coelho, da Codevasf, disse que construir estrada não era papel da companhia. Segundo ele, isto era uma atribuição do estado ou do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Logo em seguida disse que teve a informação de que o presidente da Codevasf iria buscar recursos para a estrada de Xique-xique, o que na prática nada significa.

O advogado da companhia Marcos Pamplona disse que existe de fato um questionamento sobre a aquisição de terras griladas, que não chegou a ser apreciado pela justiça e foi pacificado pelo governo estadual.

O secretário de Meio Ambiente de Xique-Xique, Roberto Rivelino, comparou o projeto a uma árvore mal plantada, cuja tendência é crescer torta e nada produzir. Ele destacou a falta de acesso para o Baixio, a não realização de consulta às comunidades tradicionais e problemas com a compensação ambiental. Rivelino citou que foram plantadas árvores no local onde houve supressão, à margem do canal. Logo em seguida, de forma inconsequente, tudo foi retirado novamente.

Sérgio Coelho disse que o replantio é uma condicionante relevante e que a Codevasf pretende fazer parcerias para produzir mudas e cumprir o que diz a lei. A resposta sai pela tangente. Na prática, a atribuição é da empresa, que ao que tudo indica pretende dividir com terceiros essa responsabilidade.

Foi só no final da audiência que os trabalhadores rurais e um sindicalista de Itaguaçu puderam se manifestar.

Ivete Ribeiro de Lunas, 54 anos, agricultora familiar e criadora de animais na comunidade de Muquém, em Itaguaçu da Bahia, disse que as comunidades não foram convidadas para a audiência. Só souberam no dia anterior e, por isso, não estavam em maior número. Embora muito nervosa por ser a primeira vez que falava ao microfone, ela foi veemente:

“A gente está aqui para saber o que vão fazer da gente. Vão pegar a gente e jogar de lá pra fora? Eu quero a resposta agora.”

E prosseguiu:

“A Codevasf nunca passou em nossas comunidades para dar satisfação nenhuma. Quando a Codevasf chegou lá, a gente já estava lá. Então ela tem por obrigação de dar uma satisfação pra gente. Se a Codevasf é velha, nossos povoados são muito mais velhos. A Codevasf tem de respeitar às famílias de lá – acrescentou.

Mais uma vez Sérgio Coelho enrolou:

“Entendo que foi feito um autorreconhecimento das comunidades de fundo e fecho de pasto e a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) está analisando a questão. Pode ser que a CDA chegue a um acordo em parceria com a Codevasf. Só que ela nunca nos procurou. A gente foi a uma reunião com a governadoria e o CDA entendeu que não tinha essa terra no estado, que não eram terras devolutas”.

(Nota da redação: A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho estabelece que a auto identificação dos povos e comunidades tradicionais é um direito. O artigo 6º da convenção diz que os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e através de instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas suscetíveis de afetá-los diretamente. Nem os governos federal e estadual, nem a Codevasf cumprem o que está determinado.)

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou nota sobre a audiência e os danos causados às comunidades tradicionais pelo projeto do Baixio. A comissão contesta informação dada por Coelho sobre a inexistência de terras devolutas. No documento, afirma que há um laudo técnico produzido pela CDA, no qual a coordenação afirma haver indícios de irregularidades nos registros das cadeias sucessórias dos imóveis rurais adquiridos pela Codevasf. O laudo consta da ação civil pública ajuizada pelo MPF após representação das comunidades e entidades que lhes dão apoio.

A CPT acrescenta ainda que existem marcas até hoje das 11 comunidades incendiadas por jagunços, chefiados pelo grileiro Airton das Neves Moura, além de depoimentos de pessoas expulsas de suas casas e roçados. Levantamento mostra que 76 famílias foram obrigadas a abandonar o local e nunca mais voltar.

O representante da comunidade São João, Gildásio Félix Bonfim, 51, criticou a empresa por comprar terras griladas e afirmou que os agricultores familiares e criadores de animais lutarão por seus direitos e não sairão do local onde nasceram.

“Vi aqui muitos pontos que só favorecem os empresários e a Codevasf. Doutor Sérgio falou das empresas, falou das grandes empresas, das médias empresas. E as comunidades? E as comunidades de Itaguaçu e Xique-Xique? Nossa região é uma região carente, pobre, e nós vivemos de nossos criatórios. Hoje, a Codevasf diz que comprou. Comprou o quê? Terras griladas. Todo mundo sabe disso. As terras foram griladas por seu Airton Moura. Estamos lutando por nossos direitos e nós não vamos sair de lá não. Eu ouvi dizer que estava resolvido o problema. Resolvido como assim? Se nunca resolveu nada com a gente. Se a CDA tem que resolver, que ela haja, estamos esperando. Nós fomos a Salvador, fomos a Brasília e não temos nem uma resposta. Queremos nosso direito. E vamos ter nosso direito se deus quiser? “.

A MORTE DO RIO VERDE

Rio Verde a 20 km a montante da barragem de Mirorós, em setembro de 2008. Foto: Tássio Cunha

Rio Verde a 20 km a montante da barragem de Mirorós, em setembro de 2008. Foto: Tássio Cunha

Leito seco do rio Verde, em Itaguaçu da Bahia. @Thomas Bauer/CPT Bahia

Leito seco do rio Verde, em Itaguaçu da Bahia, a jusante da barragem. Foto: Thomas Bauer / CPT Bahia

O último participante foi o suplente de diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaguaçu da Bahia Antônio Batista de Souza Filho, o Toinho. O sindicalista abordou questões importantíssimas como a escassez de água. O nervosismo que fazia com que a voz mudasse de tom refletia a pressão da Codevasf e a indiferença como são tratados pelo governo Rui Costa os trabalhadores rurais que estão no caminho de grandes empreendimentos.

“Como a Codevasf encara o agricultor familiar que está lá em volta do projeto? Logicamente esse pessoal vai ser vítima desse projeto? O que a Codevasf fez para resolver esse problema socioeconômico? Hoje se fala muito na questão da sustentabilidade. Será que esse projeto é sustentável? Não se fala no aspecto ecológico e ambiental de tudo isso. Uma outra questão muito forte é as águas. O que foi colocado aí é uma realidade bem diferente do que a gente está vendo. Em vez de grandes volumes de água, os rios estão morrendo. O Rio Verde jogava água no lago e hoje está morto, recebendo uma gota de água do lago. Que preocupação esse projeto tem sobre a existência da água? A gente sabe que a média de perfuração de poços na região de Irecê era 30 metros, hoje anda numa faixa de 400 metros e olhe lá. Então, eu acho que o projeto tem que encarar essa situação de uma maneira séria e honesta” – disse.

“O que foi colocado aí [na audiência pública] é uma realidade bem diferente do que a gente está vendo. Em vez de grandes volumes de água, os rios estão morrendo.”

A diretora do MDR Adriana Melo não fez referência à questão da água. E finalizou com mais promessas vazias. Segundo ela, o ministério lançará um programa de revitalização das bacias do Parnaíba, São Francisco, Taquari e Alto Araguaia. Uma contradição diante da afirmativa repetida durante a audiência de que o governo federal não tem verba para novos projetos.

Participaram da audiência representando ministérios e a Codevasf, além de Adriana e Coelho, , Bruno Batista Melin, diretor do programa da Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em Transportes do Ministério da Economia; Agrício Braga, assessor do programa de parcerias do Ministério da Economia; Pryscilla Bezerra Silva, a coordenadora-geral de agricultura irrigada do Departamento de Desenvolvimento Regional e Urbano da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional; e Harley Xavier Nascimento, superintendente SR2 da Codevasf.

*Jornalista, 58 anos, traz no sangue a mistura de carioca com português. Em 1998, após trabalhar em alguns dos principais jornais, assessorias e sites do país, foi para o Ceará e descobriu um novo mundo. Há dez anos trabalha na Bahia, mas suas andanças não param. Formou comunicadores populares nas favelas do Rio e treinou jornalistas em Moçambique, na África. Conhece 14 países e quase todos os estados brasileiros. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.

Fonte: Meus Sertões.