Manter a estabilidade de alguns é a causa da instabilidade de outros

Ilustração.

INALDO BRITO | Recentemente, um assunto tem sido capa de jornais e muita repercussão nas redes sociais, por conta das propostas de reforma administrativa do Governo: estabilidade dos servidores públicos. Como aqui no Brasil a maioria das decisões econômico-financeiras não são tomadas com base na observação apropriada das teorias econômicas e o rigor que obedecê-las exige, a politicagem é quem acaba se sobrepondo à racionalidade fiscal.

Como já dito em outro artigo para este jornal, o funcionalismo público já se encontra em obesidade mórbida, devido à alta concentração de servidores em seu quadro de pessoal, muitos desses que se tornaram verdadeiros parasitas do país por conta dos altos salários que recebem, além dos privilégios nababescos que possuem em virtude do cargo e função. Essa constatação não é feita por mim, e sim pelo próprio Banco Mundial através de relatório publicado no ano de 2018 – Um ajusto justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil e Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro: o que os dados dizem?

Entretanto, é só o assunto do enxugamento da máquina pública vir à tona para que grupos corporativistas do setor público, mancomunados com alas políticas e recebendo o apoio de pessoas ligadas direta ou indiretamente ao funcionalismo estatal, começarem a propagar seus mantras sobre a crucialidade da estabilidade dos cargos públicos. E na defesa pela manutenção de seus privilégios, há espaço para tudo: desde a exibição dos seus méritos e conquistas chegando até mesmo ao apelo emocional. Muito se fala sobre direitos e garantias, mas pouco se cogita sobre responsabilidades e deveres, principalmente no que diz respeito ao contingenciamento de despesas.

O funcionalismo público deveria ser tratado como qualquer outro setor, entretanto foi alçado a um patamar de destaque em relação aos seus mantenedores e pagadores – o cidadão comum e o setor privado. Fazer um concurso para muitos se transformou num tipo de conquista da “Terra Prometida”, tudo para, segundo os próprios candidatos, possuírem estabilidade, e é aqui que chegamos ao objeto desse texto.

A estabilidade almejada por grande parte dos concurseiros é depositada em um emprego fixo, sem as ameaças de demissões ou desligamentos por reformulação de quadro de pessoal ou por causa de oscilações do mercado, ou seja, procura-se estabilidade como garantia de se ver livre de riscos. Em suma, é isso que pauta boa parte dos integrantes do funcionalismo público.

Os servidores públicos federais se transformaram numa elite, sendo guiados por lei própria (Lei n° 8.112/1990) – servidores estaduais e municipais também possuem suas próprias legislações acerca do regime de atuação, direitos e garantias. A estabilidade é conquistada após três anos de exercício, com base nas avaliações periódicas executadas pela Administração Pública. A lei até menciona que, caso o servidor mostre inaptidão na função, ele pode ser realocado para outra durante esse período probatório, mas dificilmente será exonerado em decorrência de inaptidão nesse mesmo período. Após os três anos, ele está oficialmente integrado ao quadro de servidores públicos e, enfim, atingiu a estabilidade tão sonhada.

Engana-se quem acha que isso é diferente nas empresas estatais. Na empresa estatal, como é regida pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o período probatório é de 90 (noventa) dias, assim como o praticado no setor privado, porém dificilmente alguém é exonerado nesse mesmo período em virtude de inaptidão, pelo contrário, o empregado público também possui todas as garantias de estabilidade assim que é contratado, tal como o servidor. Mesmo que se prove que algum funcionário mereça ser demitido por não atingir o grau mínimo de desempenho esperado, ainda assim ele passará por toda a gama burocrática estatal, com abertura de processo administrativo, análise de recursos etc., até que, então, ele venha a ser exonerado ou demitido.

Para alguns funcionários públicos de elite, a exoneração é transformada num singelo afastamento do cargo ou numa simples aposentadoria compulsória (é só pesquisar os inúmeros casos em que isso acontece no meio jurídico – juízes, desembargadores, magistrados). Ou seja, para alguns a estabilidade é de fato para toda a vida. Por isso não causa surpresa a reação contrária a qualquer projeto de reforma administrativa que visa combater justamente essas regalias.

O funcionalismo público era de uma incipiência trôpega, como uma gota de óleo numa jarra de água, mas aos poucos foi se avolumando até ao ponto de, conquanto seja uma fatia do mercado empregatício, conseguir impetrar toda uma cultura de trabalho que se assemelha a uma ficção infantil, onde nesse setor todos podem ter seus sonhos, vontades e desejos realizados rapidamente, bastando para isso ter os contatos e influências políticas necessários para o atendimento de suas demandas vantajosas.

Combater a estabilidade não é querer extinguir o funcionalismo público, e sim torná-lo mortal como qualquer outro setor e, consequentemente, isonômico. É demonstrar que ele também possui suas pontas soltas que acabam causando mais males do que benesses, e mostrar que muitas vezes o risco é uma variável que deve ser gerenciada, em vez de temida cegamente.

Infelizmente, as manobras políticas do corporativismo estatal, pavimentadas por grupos políticos que possuem seus currais eleitorais também no setor público, já orquestram o fatiamento de uma reforma administrativa que ataque privilégios, como o da estabilidade. Continuaremos a testemunhar o assolamento do país porque elites minoritárias do Estado insistem em querer ser mais iguais do que os outros trabalhadores.