O silêncio dos “bons” perante o crime dos maus
Ilustração.
INALDO BRITO | A indignação com que muitos de nós agimos ao ver alguma injustiça óbvia ou crimes explícitos sendo praticados por nossos representantes políticos é como acender fogo à palha: da mesma forma que acende rápido, apaga rápido. Aquela indignação antes acalorada se esvai rapidamente à medida que continuamos com as nossas atividades. E, então, repete-se a mesma atitude quando se sabe de notícias semelhantes a anterior, ficando assim num ciclo aparentemente sem fim e sem mudança.
A forma como a classe política trata os impostos arrecadados, oriundos dos nossos salários, do que compramos ou vendemos, e até mesmo da empresa que abrimos e gerenciamos ou das atividades autônomas que executamos, é de causar vergonha mesmo ao pior dos gângsteres. Como já falado em outros textos aqui neste jornal Pagina Revista, a arrecadação tributária no Brasil é uma das mais altas do mundo, conquanto não haja a contrapartida devida ao cidadão que paga impostos tão abusivos.
Se já não bastasse isso, ainda temos que conviver com a sanha predatória de grupos políticos por mais verba aos seus estados, aos seus partidos e aos seus “amigos”, mas engana-se quem pensa que as verbas aos estados são fruto da preocupação em melhorar as áreas dos seus redutos, pelo contrário, o interesse é quase sempre voltado para abocanhar uma parcela da verba, seja por conta de licitações superfaturadas ou desvios para suas contas através das empresas “laranjas” que possuem.
Quando eu disse no início que essa indignação que muitos de nós possuem é mero fogo em palha é porque parece que nos acostumamos ao que tais políticos criminosos fazem enquanto possuidores da máquina pública. As investigações da Operação Lava Jato expuseram como esse balcão do crime estatal foi institucionalizado. Grandes empresas cartelizavam licitações para serem pagas com dinheiro público a fim de, em seguida, pagarem por Caixa 2 àqueles políticos ou burocratas que facilitavam a vitória da empresa (o superfaturamento de obras faraônicas, como as da Copa de 2014 e Olímpiadas do Rio de 2016, eram apenas a consequência do rent-seeking da organização político-criminosa).
Mesmo com tudo o que veio à tona (e ainda vem periodicamente) sobre a corrupção praticada por políticos, por que a maioria deles ainda continua praticando escancarada, e até mesmo “legalizadamente”, tais crimes diante da população? A resposta vem em duas partes.
Primeiro, o ambiente de insegurança jurídica no país favorece a continuidade da corrupção e, consequentemente, a impunidade para os atores e envolvidos nos crimes. A lei que garante o ladrão de galinhas atrás das grades é a mesma que possibilita a soltura daquele que desviou milhões de reais da saúde – basta que haja algum “conhecido” no tribunal onde a ação é movida e “tudo se resolve”.
Não é surpresa para ninguém que nossas instituições jurídicas e legislativas (leia-se políticas) mantêm uma relação no mínimo suspeita e inconveniente entre si, tendo em vista que até mesmo o ingresso na mais alta Corte do país é uma indicação daquele que está no cargo mais alto do Executivo (o presidente da República). Alguns podem até dizer que, conquanto haja essa indicação, ainda assim o indicado tem que passar por aprovação nas Casas Legislativas. Sim, é fato! No entanto, é exatamente nessas entrevistas e sabatinas onde a troca de favores começa.
Um ou outro desses indicados às vezes pode ter desempenhado alguma função para o partido do presidente em uma outra situação, possuir grau de parentesco ou vínculos de amizade com o mesmo, o que, nesse caso o próprio indicado já deveria se notar como suspeito para assumir o cargo, porém o que vemos é que, em vez de eles se declararem suspeitos (cuja declaração seria uma demonstração clara de seu caráter ilibado e íntegro, pelos menos aparentemente), preferem fingir que não há problema algum e seguirem com o trâmite, afinal de contas, o que está em jogo é poder.
Nas cortes inferiores não acontece diferente. O relacionamento afetivo entre alguns juízes e políticos é desconsiderado pelo próprio magistrado na hora de julgar os processos contra seu “amigo-réu”. As interpretações do significado da lei variam dependendo de quem está sendo acusado. O famoso adágio orwelliano sempre é levado em consideração quando o assunto é julgamento de políticos: “Todos são iguais. Mas há alguns que são mais iguais do que outros.”
Para concluir esse primeiro motivo do porquê de a corrupção persistir, fica claro que a insegurança jurídica possibilita tal perpetuação dos crimes do colarinho-branco, gerando um ambiente favorável para que a lei só seja cumprida por quem não pode ou não quer subornar um agente público. Infelizmente, países pobres são os que mais sofrem com a corrupção, já que o dinheiro utilizado para pagar políticos e agentes jurídicos corruptos é o mesmo dinheiro que foi desviado do hospital que deveria atender a população mais carente, das obras na estrada que deveria ligar duas cidades etc.
Em segundo, o político é reflexo do seu eleitorado. Muitos dizem que o exemplo deveria vir de cima, mas como pode isso acontecer se para se chegar ao topo é preciso começar de baixo? Mesmo que alguém muito rico se candidate a algum cargo político, para ele ser eleito é preciso atingir o número de votos necessários. Claro que se ele for alguém interesseiro e mau-caráter, provavelmente ele utilizará suas próprias posses para comprar votos (modalidade que, conquanto a Justiça diga que não acontece atualmente, ainda assim é feita tanto nos grandes centros como nos municípios pequenos e isolados), entretanto, mesmo ele sendo um rico desonesto, preferirá comprar votos utilizando as verbas de campanha do próprio partido, que nada mais são do que dinheiro público dos pagadores de impostos.
O eleitor que aceita vender seu voto ou que procura granjear favores com políticos, em troca de conseguir o maior número de pessoas para votar no candidato, não é diferente do político que, quando eleito, procurará fazer alianças com outros parlamentares pensando muito mais em quanto pode ganhar com os repasses de verbas do que no atendimento às necessidades da sociedade. Para esse eleitor, indignação não faz parte de seu vocabulário quando vem à tona casos de corrupção pois tais crimes “circunstanciais” já são normais no seu modo de vida individual.
O fato de haver tantos políticos acusados dos mais variados crimes ainda sendo eleitos e permanecendo com seus foros privilegiados – além de procurar garantir ao máximo que seus processos não sigam o trâmite devido, e até mesmo torcendo para que prescrevam enquanto ele ainda estiver no poder – expõe como a mentalidade do eleitorado ainda é coberta pela prática do “jeitinho brasileiro”, do “rouba, mas faz”, do “ele é o único que pensa nos pobres” etc. Cada justificativa dada pelo cidadão comum para continuar votando no político acusado e provado de cometer corrupção, desvios de dinheiro público, locupletação ilícita etc. é o que motiva o próprio político criminoso a continuar seus crimes e a manter sua desfaçatez perante cada um deles – em um caso ou outro quando algum deles é preso e sentenciado, há até torcida e acampamento do lado de fora da cadeia exigindo a sua soltura. Não há nada mais esquizofrênico numa população do que amar os políticos que roubam “justificadamente” seu dinheiro e cativam sua mente para defendê-los e exaltá-los apaixonadamente.
Apesar de ter citado apenas duas possíveis causas para a perpetuação da corrupção no país, creio que uma outra pode ser acrescida também, e ela é a ingenuidade das pessoas.
Com a atual crise pandêmica do Covid-19 veio à tona as somas absurdas que o Governo pretende repassar aos estados e municípios como ajuda estatal. Engana-se quem acha que tais valores serão integralmente investidos conforme se anuncia. Isso não é desejar o pior, mas sim analisar a realidade como a conhecemos, e essa realidade é ocupada por uma grande parte de políticos criminosos acostumados a abocanhar sempre uma fatia dos repasses públicos. Aqueles que faziam isso antes da crise pandêmica atingir o país são os mesmos que fazem parte do grupo que irá gerir tais repasses mastodônticos a fim de “ajudar no combate à pandemia”.
Alguns de nós podem alegar que, independentemente do que for desviado, ainda assim chegará uma parte para ajudar os locais. No entanto, pensar assim é justamente continuar relativizando a corrupção e fornecer mais combustível para se perpetuar criminosos corruptos no poder. Talvez um dos grandes perigos de nossa sociedade não seja a indignação do tipo fogo em palha, mas sim não se indignar mais com os erros políticos ao nosso redor e, consequentemente, não procurar corrigi-los por meio do engajamento na área. E isso nem precisa ser se candidatando na eleição próxima, mas antes estudando, pesquisando e se aprofundando intelectualmente a fim de possuir os argumentos necessários para tentar convencer o maior número de pessoas ao seu redor de como elas devem exercer sua inteligência corretamente, em vez de vendê-la ao primeiro que aparecer diante dela prometendo mundos e fundos.
Não obstante, apenas indignar-se não é suficiente; é preciso resiliência para defender a qualquer custo o que é certo e denunciar sempre o errado. E talvez seja nessa empreitada que muitos têm desistido e entregado os pontos. Para o íntegro, a afirmação de G. K. Chesterton cai como uma luva: “O certo é certo mesmo que ninguém o faça. O errado é errado mesmo que todos se enganem sobre ele.” Já o mau-caráter procurará nas entrelinhas do que foi escrito aquilo que é conveniente para continuar justificando suas posturas corruptas e atitudes infames.
Quando isso acontece, é de se concluir que a inteligência foi corrompida e substituída por uma pseudo-inteligência, cujo inepto fará o que estiver ao seu alcance para continuar defendendo aquilo que se tornou indefensável, por mais que a princípio se indigne.
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