Saiba o que revelam as autópsias feitas em vítimas do novo coronavírus
(Jacob King - WPA Pool/Getty Images).
Sepultados sem velório, em caixão fechado e isolados em seus momentos finais, os mortos pela Covid-19 no Brasil começam a ajudar os médicos a aprender sobre a doença e a impedir que mais pessoas morram. Usando uma estratégia de autópsia minimamente invasiva, para evitar o contágio, cientistas da equipe de Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) se defrontaram com a “enorme agressividade do coronavírus” e encontraram pistas de seus esconderijos.
Ele apresentou os primeiros resultados numa sessão científica virtual na Academia Nacional de Medicina (ANM), da qual é membro. O trabalho foi realizado com as médicas e pesquisadoras da USP Marisa Dolhnikoff e Renata Monteiro.
Como é a autópsia minimamente invasiva?
Foi a forma que encontramos de investigar os corpos de vítimas dessa doença altamente contagiosa. As autópsias convencionais estão paradas. Então usamos tomografia, ultrassom e microscopia. Imagens de ultrassom nos guiam para retirar, por meio de punção por agulha, amostras dos órgãos. As amostras são depositadas num biorepositório para análises futuras. Já tínhamos empregado esse método antes.
Em que circunstâncias?
Já usamos essa técnica para analisar o cérebro de vítimas do mal de Alzheimer. Também, por exemplo, em casos de jovens pacientes com câncer, que não sobreviviam ao transplante. E temos o duvidoso privilégio de esta ser a terceira vez em que estudamos doenças infecciosas com autópsias minimamente invasivas.
Quais foram as anteriores?
A primeira foi com o H1N1, em 2009. Fizemos mais de mil autópsias, é a maior amostra do mundo. E estamos observando que o coronavírus é mais agressivo do que o H1N1. Ele promove uma depressão muito grande do sistema de defesa. O corpo fica entregue à própria sorte.
E a segunda vez?
A segunda vez foi com a febre amarela. Fizemos 80 autópsias. As vítimas tinham claros sinais de tempestade imunológica, a chamada tempestade de citocinas. Ainda temos dúvidas sobre as tempestades de citocinas na Covid-19. As autópsias nos mostram informações que de outra forma não acessaríamos. Por isso, as famílias que autorizam as autópsias fazem um gesto fundamental. É uma doença contagiosa, os órgãos não poderiam ser mais usados. Então, essas famílias doam conhecimento.
E o que já aprenderam?
Estamos no início. Mas já observamos enorme destruição, o coronavírus ataca com enorme agressividade.
Em quanto tempo os resultados ficam prontos?
Temos procurado ser os mais ágeis possível. O resultado fica pronto de um dia para o outro. Repassamos os resultados em reuniões regulares com o pessoal que está em atendimento nas UTIs.
Quantas autópsias já realizaram?
Já fizemos 15 autópsias, apresentamos os resultados de dez delas. Mas a nossa meta é chega a cerca de 60. Com elas, queremos dar aos médicos uma chance de ver o que acontece dentro das células dos pacientes.
Qual era o perfil das vítimas?
As dez vítimas da Covid-19 cujos corpos foram autopsiados primeiro tinham entre 33 anos e 83 anos, cinco homens e cinco mulheres. Três deles chegaram ao hospital para morrer. Já vieram muito doentes. Os demais ficaram até 15 dias internados. Com o estudo desses corpos queremos saber por que alguns casos evoluem tão depressa e outros se prolongam tanto até o desfecho fatal. Uma pessoa que passou 15 ou 20 dias internada e faleceu ficou 20 dias doente ou a infecção a afetou por muito mais tempo? Não sabemos.
O que viram?
Estudamos vários órgãos, como o pulmão, o fígado, os rins e o baço. Vimos uma agressividade impressionante do coronavírus. E sinais da resposta imunológica. Mas não sabemos como o coronavírus ilude a resposta imunológica. Queremos descobrir por que o coronavírus ataca com tanta avidez o sistema respiratório. Observamos que 80% das vítimas fatais sofreram microtrombos, principalmente nos pulmões.
O que são esses microtrombos?
São entupimentos dos pequenos vasos sanguíneos. Obstruídos, eles param de levar sangue para os pulmões. O vírus de alguma forma causa trombose, queremos entender como isso acontece. Só assim os médicos poderão deter esse processo com mais eficiência, salvar mais vidas.
E o que mais chamou atenção?
Também vimos muito comprometimento dos músculos, muita inflamação muscular. Isso pode explicar por que alguns doentes reclamam tanto de dores musculares.
Que outros órgãos podem ser afetados?
Vários. Sabemos que o coronavírus se liga às células que revestem o sistema respiratório, esses mesmos receptores presentes nas células epiteliais do pulmão existem em vasos sanguíneos, nos testículos, no cérebro. Ainda precisamos saber como é a ação do vírus em todo o corpo e descobrir se ele se liga também a outros tipos de receptores das células humanas e como ele deixa o sistema imunológico tão fraco.
Por que descobrir esses receptores é tão importante?
Descobrir receptores é importante porque podemos tentar bloqueá-los e fechar a porta para o vírus. É uma forma de deter a infecção. São alvos para tratamentos. Para tudo isso precisamos de dados e as autópsias minimamente invasivas são uma forma de obter esses dados.
O trabalho também envolve análise molecular?
Sim. Planejamos fazer uma cartografia do coronavírus no corpo humano. Faremos isso por exames moleculares de PCR, analisando a carga viral, para saber onde se concentra e também onde se esconde. Achamos que o coronavírus tem reservatórios no corpo humano. Lugares onde ele se esconde. Sabemos que nos homens, por exemplo, vírus gostam de se esconder nos testículos. Estamos em busca de seus esconderijos.
Da Agência O GLOBO
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